08 2005
Iugoslávia: Trabalhadores com Autogestão
Transcription of a video by O. Ressler,
recorded in Belgrade, Serbia, 23 min., 2003
O autogestão iugoslava foi um sistema moderno, na época. Tratava-se de formato híbrido de várias formas de organização comercial. Não era socialismo planejado, como na União Soviética, tampouco uma economia de mercado pura. Era algo entre um formato e outro. O socialismo iugoslavo era uma economia com propriedade social, mas também com muitas outras formas de propriedade. Esse sistema foi muito popular na sua era, não apenas junto à esquerda, mas também entre outros poderes políticos. Havia elementos organizacionais bem diversos. Na Iugoslávia havia uma administração relativamente severa de funcionários qualificados, uma administração de técnicos de partido por um lado, porém do outro, uma democracia direta, especialmente em fábricas: de um lado, o controle do partido - do outro, o controle do trabalho. Naturalmente nem sempre faziam oposição um ao outro, uma vez que o partido dominante e o trabalhador compartilhavam da mesma ideologia; que era o comunismo, a ideologia de esquerda. Mas havia muitos conflitos entre esses poderes. Uma democracia real, direta, só se notava em escalões mais baixos. Era lá que havia realmente uma democracia, onde todo mundo participava do processo decisório. Porém como em todos os outros países comunistas, não exista muita democracia nos escalões mais altos. Era um partido de funcionários qualificados, durão, que controlava essa democracia direta escala abaixo. Era dessa forma que ocorria uma mescla. A outra forma era a combinação entre economias planejadas e de mercado. Especialmente após 1965, ocorreu uma economia de mercado relativamente liberalizada, na Iugoslávia. Essa era uma resposta à União Soviética. Toda a ideologia de autogestão iugoslava era uma espécie de terceira resposta, que os funcionários socialistas constantemente enfatizavam. Não se tratava de socialismo planejado, mas também não era capitalismo. Estamos entre estes opostos; não nos encontramos num extremo; estamos numa democracia autogovernada. E esta ideologia, como terceira forma de resposta, também permitia uma política exterior muito flexível, que resultava em benefício concreto no Leste e também no Ocidente.
Nas fábricas, as decisões eram tomadas independentemente; os conselhos de trabalhadores dominavam. Mas, por outro lado, estavam sob a tutela do partido governante. É preciso diferenciar vários pontos, aqueles onde os conselhos de trabalhadores dominavam e os outros, onde se dependia de decretos vindos de escalões mais acima. Na distribuição da receita, nas empresas, os conselhos de trabalhadores - onde todos os trabalhadores estavam presentes, não apenas os especialistas - eram soberanos em suas decisões. Quanta receita deve ser distribuída, quanto deverá ser posto de lado para outros propósitos, etc.? Mas nas fábricas também havia muitas questões de especialistas, onde os controles de trabalho não dominavam. Essas eram questões puramente de ordem técnica, engenharia, tecnologia, etc.. Ali, os experts eram soberanos. Pode-se dizer que havia três áreas: uma referia-se à questão dos experts, uma segunda área era a questão da distribuição, dentro da fábrica, e a terceira era a questão do quadro rígido de funcionários. Lá o comitê do partido sempre decidia, e não existiam decisões soberanas por parte dos conselhos de trabalhadores. Pode-se dizer que era uma democracia direta mista, com muitos níveis. Porém, comparada com a situação atual, na Iugoslávia, por exemplo, onde um tipo de capitalismo selvagem domina, era uma democracia que relativamente funcionava. A classe trabalhadora e os pobres tinham uma espécie de direito soberano, que não possuem hoje. Não se pode rejeitar o sistema de autogestão iugoslavo, como um todo, como sendo totalitário, que hoje eles não são. Mas não se pode romancear esta faceta do socialismo. A verdade fica no meio-termo, como em todos os outros setores. A verdade fica entre dois extremos: tratava-se de um sistema de um único partido, mas também havia democracia direta nos níveis mais baixos. No nível do trabalhador, por exemplo, esses não podiam perder o emprego sem que o conselho de trabalhadores fosse convocado. O diretor não podia decidir sozinho. O conselho de trabalhadores, do qual participavam trabalhadores comuns, decidia se o trabalhador servia ou não. Hoje, somente os decretos têm validade. Também, em outras questões sociais, como moradia, férias e distribuição de renda, os conselhos de trabalhadores funcionavam.
Naturalmente havia vários problemas. Quero me
referir, aqui, somente a respeito de alguns problemas
estruturais. O sistema iugoslavo de autogestão
surgiu num estado balcã relativamente subdesenvolvido.
Isso era principalmente relevante para a força
de trabalho. Havia uma massa populacional rural muito
subdesenvolvida nos anos 50 quando a autogestão
se iniciou. Primeiro foi necessário criar uma
classe trabalhadora moderna, o que não era tão
simples, porque muitos trabalhadores estavam presos
às suas vilas. Os fazendeiros tinham que ir trabalhar
na indústria. Este foi um problema-chave, mas
não era apenas relacionado a uma cultura industrial,
como também a uma imatura cultura política.
A região dos Balcãs foi castigada pela
guerra e ditadores, e não se teve uma longa tradição
de cultura política. Isso também era muito
importante para a autogestão. É lógico
que essa pode funcionar somente num ambiente aculturado.
Sem cultura, sem educação, sem escolas,
sem qualificação de mão-de-obra,
não existe autogestão. O segundo problema
que mencionei foi o contraste entre a democracia direta
e o controle pelo núcleo de funcionários
profissionais: este enclave interno situado entre o
controle do partido e o esforço dos trabalhadores
para criar seu próprio espaço democrático.
E o terceiro, importante, problema estrutural era o
contraste entre as áreas ricas e pobres na Iugoslávia,
as repúblicas ricas e pobres que posteriormente
tornaram-se nações ricas e pobres. Desde
o início de 1986, uma luta latente entre ricos
e pobres tem se desenvolvido. Tito tinha que constantemente
ser o árbitro entre ricos e pobres. Era uma batalha
na distribuição da verba federal. Esta
contradição cultural impedia o funcionamento
da autogestão no país.
Na minha opinião, a autogestão iugoslava
desenvolveu-se mais na Eslovênia, nossa mais desenvolvida
república. Em Kosovo, Macedonia, Montenegro,
onde dominavam antigas tribos, jamais pode haver uma
verdadeira autogestão e democracia. Convém
saber que, anteriormente, a Iugoslávia era um
estado federal com áreas muito heterogêneas.
Havia diferenças nos níveis de desenvolvimento
cultural, religioso mas também no setor industrial.
Era muito difícil coordenar tudo isso. Mas era
possível; funcionou por quase 40 anos. Tito também
era muito importante pelo seu papel de líder
de um estado tão contraditório e explosivo.
A autogestão iugoslava foi um laboratório tanto social quanto nacional. No sentido social, foi uma experiência na qual influíram muitos grupos de idéias: o legado da Comuna de Paris, o legado da social democracia da Sérvia, em fins do século XIX, o legado da anarquia, posteriormente muito importante na crítica ao estalinismo. Esses elementos anárquicos e por vezes trotskista eram componentes da ideologia do partido de Tito, porque úteis na crítica ao estalinismo. Por outro lado, como disse, o sistema da autogestão iugoslava também era um laboratório nacional e até mesmo transnacional. Era um regime onde muitas diferentes nações tinham convivido em paz, onde uma economia transnacional funcionava, onde um líder transnacional era muito popular - da Macedonia à Eslovênia. O carisma de Tito, embora ele tenha sido autoritário, possuía também um cunho claramente cosmopolita. Uma vez eu o comparei ao carisma de Alexandre, O Grande. Esse era um líder autoritário, mas unia diversos povos distintos. Isso também vale para Tito. Também gostaria de mencionar que é importante considerar esta história da autogestão iugoslava a partir de uma perspectiva extrema. É necessário que mantenhamos os olhos abertos para o passado, para então julgar que grau de autoritarismo existia. Tratava-se de uma democracia iluminada, autoritária, direta - embora esses termos possam parecer um tanto contraditórios, à primeira vista. Mas na minha opinião, tudo era muito contraditório. É impossível entender este estado em termos e categorias não ambíguas.
Aquele prédio fronteiro era o comitê central da Federação Comunista Iugoslava. As reuniões se realizavam lá. Um edifício bonito e moderno, construído nos anos 70 e bombardeado em 1999. Ficou bem estragado na época. Mais tarde, um comerciante comprou o prédio; reformou-o e agora quer utilizá-lo para finalidades privadas. Aqui deu-se uma virada histórica. Nesta praça, na qual a crítica ao capitalismo foi muito forte, desenvolveu um centro comercial e capitalista.
Acho que a autogestão é uma sempre-viva. Não se trata de mero romantismo, nem se trata de um tipo de democracia totalitária como hoje querem os liberais. No meu entender, é uma democracia plena a qual, infelizmente, não é possível na atual globalização. Assim como outras idéias, a autogestão carece de uma era na qual os contrastes sociais estejam suficientemente maduros para criar este tipo de democracia. Essa situação existia na Iugoslávia dos anos 50 e 60, quando o contraste entre o estalinismo e o capitalismo liberal era muito acentuado. Não creio que o clima atual seja propício para uma possível autogestão num capitalismo globalizado, onde tudo que for privado é normalizado.
Tenho uma visão também múltipla de uma sociedade desejável. Toda a época histórica cria sua própria óptica desejável. Minha opinião é que nunca deve existir o capitalismo selvagem. Deve-se ter sempre uma combinação de várias formas de propriedade e, principalmente, uma coexistência pacífica de sociedades diferenciadas nacional e socialmente. Sem paz social, sem paz nacional, que é algo que conhecemos muito bem nos Balcãs, não há visão, nem utopias e nem críticas amadurecidas do que aí está. Portanto, minha visão está fora do atual capitalismo normalizado.
Tradução: Itaucultural Institute, Sao Paulo